sábado, 3 de novembro de 2007

CARREGANDO A PRÓPRIA CRUZ

Mateus 16.21-27

A expressão “carregar a própria cruz” tomou um outro sentido na vida das pessoas. Segundo a interpretação popular é “suportar um problema”, ou várias dificuldades que se manifestam durante a existência humana. Esta interpretação não condiz com o ensino do Evangelho, por mais que se saiba sobre o que Jesus Cristo realizou em prol da humanidade, assumindo todas as conseqüências do pecado, nos substituindo no madeiro.
Se não é assim correta a interpretação popular, qual é o significado de “carregar a cruz”? É importante observar o seguinte: Jesus começou a mostrar que ele seguiria para Jerusalém, lugar onde seria morto pelas autoridades religiosas, que o contemplavam como um intruso que veio arruinar com a sorte dos que exercem o poder religioso, unido ao poder do Estado. Também mostrou que ressuscitaria dentre os mortos, sendo esta a sentença contra toda a sorte de infortúnios e a excelsa vitória sobre o mal em todas as suas facetas, exibidas no seio da sociedade, mediante as mais grotescas obras geradoras de desequilíbrio humano. Mas Pedro, um dos apóstolos, começou a reprovar o Mestre, dizendo que Jesus Cristo teria de exercer compaixão por si mesmo e a impedir que o Senhor fosse ao Calvário, cumprir a vontade do Pai. É nesse ponto que Jesus repreende o apóstolo, dizendo que este estava sendo uma “pedra de tropeço”, tentado impedir a missão do Senhor, de morrer e ressuscitar.
“Carregar a cruz” não é outra coisa, senão assumir um compromisso até o fim. Jesus disse que “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me...” Seguir a Jesus implica em renúncia, porque a pessoa passa a fazer parte de uma grande missão, que é a missão de realizar a obra de Deus no mundo. A obra de Deus é restaurar a humanidade e o próprio cosmos. Deus salva o homem e o mundo. Jesus Cristo é o mediador da criação e da redenção do homem e do mundo. A salvação está inscrita na criação. Não há dissociação, fundamentada em dualismo grego.
Não devemos exercitar o pensamento da forma como muitos fazem. Temos de absorver o ensino genuinamente bíblico, que não nos distancia do propósito divino, de nos inscrever na história como cúmplices de uma obra que ajusta o homem e o seu habitat. Foi por isso que Jesus Cristo deu a sua própria vida, sem titubear num momento sequer. Assim, convida pessoas para fazerem parte do seu plano de ação, com a finalidade de reconstruir o homem e o mundo, de maneira eficaz. Isto significa “carregar a cruz”. Aqueles que receberam o convite de Jesus e os que estão recebendo agora devem “carregar a sua cruz”.
Rev. Nelson Celio de Mesquita Rocha

A Realização do Amor a Deus no Amor ao Próximo

(Marcos 12.28-34)

Não se pode entender a relação com Deus de forma fragmentada e desconectada da operosidade em relação ao nosso semelhante, bem como ao mundo e a realidade que nos cerca. Classificar algum mandamento única e definitivamente como principal é experimentar a dissociação que já impera no mundo cartesiano: divisões por vaidades, classes de pessoas por ambições, ricos e pobres por interesses, ter em detrimento do ser, etc.
O texto do Evangelho de Marcos, em epígrafe, nos toca existencialmente. Nos mostra que a novidade do evangelho não consiste em propor o amor como mandamento principal. Ele não pode ficar num pedestal teórico, sem operosidade, apenas erguendo-se como um título desconexo com a realidade. Isso quer dizer que a profissão de fé em Deus não consiste de expressões sem compromisso, mas de demonstração de boas obras, que marcam uma vida que foi alcançada pela divina graça. Nessa condição, não existe nenhuma possibilidade de dualidade, de separação, de segregação ou de qualquer outro termo que indique alguma divisão.
O ensino de Jesus de Nazaré, hoje, nos educa no sentido de aprendermos que o amor de Deus se exprime e se realiza no amor para com o próximo. Há uma unidade que se presencializa no conteúdo apresentado por Jesus ao doutor da lei mosaica, um dos escribas que fez a pergunta sobre “Qual é o principal de todos os mandamentos?” (Mc 12.28). Jesus lhe responde que amar a Deus implica em amar o próximo como a si mesmo. Caso não seja assim, fica-se apenas com uma religião sem sentido histórico. A premissa básica, no ensino de Jesus, que acentua a unidade, é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios.
Urge que, hoje mesmo, deixemo-nos tomar pelo conteúdo do ensino evangélico, considerando a unidade do mandamento que tem a função de educar o ser humano para viver a vida de verdade, sem os engodos das separações que são feitas no cotidiano, e que só causam mal ao relacionamento humano. Saudemos esse novo tempo inaugurado por Jesus Cristo, pois não tem conhecido fronteira, e tem uma luta diária em prol da unidade, mesmo que exista a diversidade. Vivamos hoje, de forma livre, para construir uma história menos egoísta e com menos divisões, sejam de que tipo for. Deixemos para a posteridade uma herança que traz em seu bojo a maior riqueza: a realização do amor a Deus no amor ao próximo. Isso implica na própria realização do ser, a partir da consciência percebida no encontro com o Deus da vida.

Rev. Nelson Célio de Mesquita Rocha

CRIAÇÃO E SALVAÇÃO

Um estudo sobre a afirmação teológica da
criação e salvação sob o dínamis do Espírito

Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

ROCHA, Nelson Célio de M. Criação e Salvação. Um estudo sobre a afirmação teológica da criação e salvação sob o dínamis do Espírito. Rio de Janeiro: 2007. 467p.

Há uma necessidade tanto quanto uma prioridade no que concerne ao tratamento teológico em relação ao tema da Criação e Salvação. Por ser necessário e prioritário, exige-se uma certa urgência e precisão epistemológica para uma reflexão séria, mediante um envolvimento objetivo, no sentido de se formar uma mentalidade engajada por parte da Igreja. A Igreja no âmbito teológico-institucional tem de responder de modo prático ao clamor daqueles que estão sofrendo, e orientar os que se encontram de forma equivocada, vivendo um cristianismo sem meta, por existirem certas reflexões com seus aparatos fragmentados, geradores de mentes incontumazes diante das interpelações da Palavra de Deus.
É a partir de observações do ângulo existencial, que algumas questões foram levantadas, e que serviram de bases motivadoras para o desenvolvimento do presente trabalho. Veja-se a seguir:
Qual é origem da criação e da salvação? A salvação do ser humano está dissociada da boa criação de Deus? A salvação é algo à parte ou está mesmo inscrita na Criação? Há uma salvação somente para a humanidade? E a criação, qual o seu destino? Terá um fim drástico? É este mundo um vale de lágrimas? Haverá uma redenção para o mundo? Se o ser humano tem a salvação, o que é nele salvo: o corpo ou alma? Ou, a pessoa de forma integral é salva? Há uma linguagem do corpo ou uma totalidade instaurada em singularidade? Há uma teologia do corpo? Qual o destino último do cosmo? Será destruído ou renovado? Qual a relação entre salvação e história? Qual a relação entre salvação e sociedade? Vida cristã e cultura: há vínculo? Qual deve ser a postura do cristão em relação à sua responsabilidade no mundo? Pode haver uma relação entre teologia e ecologia? Por que a Igreja desenvolveu alguns pensamentos extremamente maniqueístas? O que se entende por salvação hoje? É o cristianismo uma religião de salvação? Como superar a tensão dualista de uma salvação desintegrada da criação? Como resgatar hoje a noção e a prática da redenção da humanidade e do cosmo? O que fazer para haver uma harmonia entre a humanidade e o cosmo, com o objetivo de manter a obra de Deus? Haverá uma plenitude do tempo relacionada a uma nova instauração? Que coordenadas podem ser desenvolvidas para uma teologia bem ajustada com a prática? Pode haver uma boa teologia que considere a criação como graça?
Com base nestas indagações, fruto de uma inquietação permanente, foi surgindo um profundo interesse pelo tema da Criação e Salvação. E, crendo que somente através de uma reflexão aberta sobre estas questões, em nível teológico, é que se pode chegar a uma postura, pelo caminho da reflexão teológico-doutrinária, no sentido de haver uma prática pastoral-eclesial, com profundo interesse pelo Criador e por sua obra.
Uma vez que os problemas são definidos a partir das questões levantadas, e o interesse pelo desenvolvimento que parte do tema encontra base bíblico-histórico-teológica para haver aprofundamento e tentativa de redefinição de pontos teológicos, toma-se como base para uma compreensão eclesial do que se pode entender como verdade cristã na história da humanidade.

A problemática gira em torno de uma salvação inscrita mesmo na criação e não em realidades extremamente separadas. A Protologia está, portanto, relacionada com a Soteriologia, segundo o fundamento cristológico, que enfatiza a mediação da humanidade de Jesus Cristo sob o impulso da ação pneumatológica com implicações antropológicas integradas. Na realidade, quando se tenta separar estes pontos em nível de reflexão teológica, certamente se criam problemas para a vida pastoral-eclesial. Sendo assim, essas implicações fazem emergir realidades não comprometidas com o equilíbrio, que de fato a tradição biblico-teológica ensina. Surgem mais pessoas separadas da realidade, esperando apenas a realização de um mundo com características bem-sucedidas, mas somente no porvir. Desenvolve-se uma vida abstraída da realidade exterior. Destarte, a vida cristã perde o seu verdadeiro sentido, gerando pessoas alienadas em todos os níveis das relações humanas. Esse modo de ser no mundo torna-se bem aquém daquilo que realmente é constituído o cristianismo. E, o intento deste trabalho é mostrar que Criação e Salvação têm um perfil de relação integrada e de desenvolvimento, em processo de construção e acabamento.

Com base nas questões formuladas, levantou-se a seguinte hipótese: Sendo verificada uma realidade quer dualista, panteísta e maniqueísta em relação ao ser humano e ao mundo, fazendo com que se abstraia de toda e qualquer contingência intra-cosmológica, há de se ter uma reflexão teológica legítima com implicações práticas, que resgate os verdadeiros valores de um cristianismo comprometido com a história. A redenção do homem e do cosmo tem sua base na ação de um Deus não-abstrato, que se fez humano, e através desta mediação sob o poder do Espírito, conduz a criação ao seu destino legítimo. A história não ficou à mercê daquilo que prega a velha e falsa idéia de um Deus sem compromisso com a sua criação (deísmo).
O desenvolvimento da presente reflexão, contendo seu desdobramento do tema proposto, torna-se fundamental a partir de uma afirmação teológica do mundo como criação, com base na revelação e na tradição teológica, numa linha soteriológica de perfil abrangente e integral, sob a dinâmica pneumatológica, segundo a visão reformada. Essa dinâmica tem por finalidade dar atendimento a esse desenvolvimento de uma forma especial, pela dialética com que se acha inteiramente comprometido, proporcionando à Teologia e à Antropologia um toque cristológico-pneumatológico, imprescindível a uma teologia de ponta. E, uma teologia de ponta não exclui as dualidades, mas os dualismos deformadores, de linha grega e também de linha cartesiana. E, considerando que o assunto é vasto e profundo, atentou-se para uma abordagem somente nas dimensões e propriedades de uma criação estabelecida como presente divino, que se encontra numa realidade salvífica com seu pleno desenvolvimento. A boa criação de Deus não está dissociada da salvação. Deus ao criar todas as coisas e inclusive o ser humano, os destinou para a salvação.
O ser humano, homem e mulher, têm uma responsabilidade dentro da criação, no sentido de que tem de cumprir o seu mandato cultural na história, na condição estabelecida pelo Criador em pleno desenvolvimento, uma vez que a criação é inacabada. Destarte, percebe-se já que essa salvação tem uma origem real, uma finalidade e um desenvolvimento. Deus continua criando e chamando o ser humano para participar desse desenvolvimento, na condição de co-criador. E, para que ele possa exercer plenamente a sua transcendência histórica, é mister observar a cristologia numa dimensão pneumatológica, ou seja, a partir do paradigma central, que é a pessoa e a obra de Jesus Cristo, que foi ungido pelo Espírito Santo.
A relação entre criação e salvação é explicitamente percebida no contexto revelacional, embora tenha havido tentativas de separação, por causa de uma linha grega que fomentou um pensar e uma prática dualistas. Assim, é fundamental que possa existir uma teologia da criação, que tenha em si a prioridade da diferença entre Deus e a criatura, mas também que se desenvolva o tema da responsabilidade sob obediência. Assim, uma teologia cristã que esteja engajada na história, faz sentido no lugar onde haja o reconhecimento da autonomia de Deus e da autonomia do homem, porém sendo este último autônomo inteiramente dependente de Deus, havendo uma aliança possível. Portanto, é preciso haver uma superação do dualismo entre criação e salvação, porém, levando em conta as suas dualidades. E, ao percorrer a trajetória teológica, bem como as tentativas para uma existência cristã engajada na história, faz-se necessário a percepção das questões que tocam a Deus, o homem e à criação. Questões essas que incomodam e se tornam motivadoras. Assim, não obstante à percepção no sentido de se perceber que a Teologia não esteja de fato sendo o que deve ser no pensamento e práxis da vida eclesial de uma boa parcela de cristãos hodiernos, ao se observar o comportamento de alguns grupos e movimentos cristãos, fundamentados em premissas escusas à Bíblia, à Tradição Teológica e à História, é que foram pensadas as premissas inseridas e refletidas na presente exposição.
Na história da Criação e da Salvação, surgiram interpretações que comprometeram a caminhada da teologia. Interpretações que são descritas como estranhas ao cristianismo; interpretações de cunho dualista que fizeram e ainda provocam divergências em relação à verdade teológica. Concentram-se características de não fazer convergir às realidades criadas por Deus. Implicações negativas que demarcaram as linhas de pensamento, produzindo-se separações no transcorrer tos tempos, fazendo surgir uma sistemática não-integrada metodologicamente, que implicou na vida eclesial, ensinando um descompromisso com o ser humano e com o cosmo. Deu-se um desdobramento dessa realidade pobre, induzindo as pessoas ao caos, pela ausência de compromisso histórico. Fez esquecer que Deus age na história, logo, contra isso, requer uma ação integrada. Já agora, em vista dessa falta de compromisso, parece haver uma dificuldade de se resgatar a verdadeira compreensão da realidade da criação salvífica em evolução.

O que se pode identificar para a constatação de uma problemática, segundo uma pesquisa mais acurada, com fundamentos na bibliografia desta obra, é que foi na história se estabelecendo uma certa dissociação na teologia e na vida cristã, em nível docético, ou seja, produzindo-se uma forma de agir desintegrada segundo a forma gnóstica (dualismo grego), ou ainda, sob os auspícios de certa confusão do Criador com a criatura e vice-versa (panteísmo). Verifica-se que algumas vertentes da Igreja têm sido influenciadas e também têm influenciando outros grupos através da visão dualista e panteísta do mundo e do ser humano. Isso tudo, no modo de se perceber a realidade, produz mais pessoas alienadas de Deus, de si mesmas, do próximo e do mundo.
Ao existir de maneira perceptível o problema da abordagem teológica, gerando inúmeras dificuldades que tornam difícil uma reflexão dialética, estas dificuldades têm seus parâmetros nas articulações dissociativas. Foram interpretações dualistas que envolveram e envolvem a criação e a salvação no seio do cristianismo. O cristianismo não velou para que idéias gnósticas e cartesianas atentassem contra o patrimônio que não é apenas de um grupo de pessoas do mundo, mas de toda a humanidade. Uma vez que assim aconteceu, houve um certo descompromisso com o ser humano e com na criação de modo abrangente.
Articulações dissociativas se fizeram perceber em alguns ângulos, deixando a Teologia nos primeiros séculos da Igreja numa encruzilhada. Ao longo da história da Igreja e da Teologia tornaram-se penetrantes o gnosticismo enquanto filosofia e o docetismo enquanto teologia, contando-se também o ebionismo com sua rejeição da divindade de Cristo. Seguindo-se a estes, sobressaíram o arianismo com sua ênfase na face intermediária de Cristo, o nestorianismo com sua união prosópica e o eutiquianismo que ensinava a absorção da natureza humana de Jesus Cristo pela natureza divina.
Passados muitos séculos, chegando ao Século XIX, surge um novo radicalismo histórico. E, um fator que influenciou na mudança da situação cristológica, por exemplo, foi aplicado ao estudo histórico dos evangelhos, associado à expressão alemã Formgeschichte ou a Crítica da Forma. É um movimento que estuda os evangelhos historicamente, não pela análise dos vários documentos originais, mas distinguindo as diversas formas, os inúmeros tipos de episódios, parábolas, máximas, histórias maravilhosas, reminiscências a respeito de Jesus, utilizadas na pregação da Igreja Primitiva que resultaram na tradição dos evangelhos. Com isso, surgiu uma dissociação em relação à cristologia, que vai se concentrar também na Teologia de modo geral: o Jesus da história e o Cristo da fé.
Os pressupostos da modernidade formaram a base para uma dissociação entre mente e espírito; entre sagrado e profano. Se de um lado o realismo comandou uma parte da educação teológica em termos universais, por outro o nominalismo permitiu apenas refletir sobre o particular. Em termos de Ciência o sistema heliocêntrico tornou-se imperativo, depois cedendo lugar ao geocentrismo, que depois desemboca em antropocentrismo. Estas são mudanças que mostram o quanto o homem está perdido, por causa de seu pecado, que será visto no corpo deste trabalho.
É fundamental compreender uma Salvação inscrita na Criação, passando pelo crivo do ensino da Soteriologia que concentra a valorização do humano em Jesus Cristo, que plenificou o humano, através de sua pessoa e de sua obra. Destarte, havendo uma verdadeira compreensão deste fator, implicará na integração da Soteriologia com a Antropologia Teológica, para uma realidade concreta que, concomitantemente, também implicará na abordagem da Pneumatologia, de uma vida no Espírito e simultaneamente com a realidade que cerca o ser humano. Desta maneira, a Teologia estará contribuindo para a concretização de uma melhor sociedade, onde surgirão pessoas mais humanas, pelo resgate da integração do homem com a criação através da mediação cristológica. Conseqüentemente, haverá de se pensar a Teologia com implicações ecológicas, através de uma nova ordem política a ser instaurada em singularidade, compreendida por seus pontos dimensionadores.
Ainda mais, para que haja uma compreensão teológica da criação é preciso ter a noção de que ela é lugar incontornável de prova e de bênção. A realidade se apresenta com consistência própria, rica e complexa. Deve haver uma relação entre o homem e a natureza. Na Bíblia pode-se encontrar uma marca decisiva de estruturação dessa realidade. Deus se revelou mais profundamente ao homem, e a criação é oferta a esse homem, como bênção ou ocasião de graça. Percebe-se, portanto que nessa linha estrutural a figura de gratuidade de Deus para com o homem é uma realidade incontornável.

Quanto ao problema do mal, percebe-se o aumento de sua contingência e de seu desdobramento desde a origem. O homem é responsável pela distorção ocorrida. As forças do mal e do pecado afetaram à humanidade e à própria natureza, fazendo com que perdesse a direção e a sua missão na terra. Assim, percebe-se a necessidade de uma palavra a esse respeito.

Quanto à criação, ela deve ser vista em forma de processo. Ela é um bem que vem de Deus. O homem, situado no começo de uma criação de Deus e sobre ele pesa a responsabilidade de cuidar dela, mesmo que o mal se apresente com suas nuances. A ardente expectativa da Criação aguarda a libertação (Romanos 8.8,18ss). É fundamental observar que há as dimensões da existência humana inscrita por Deus na obra da Criação. “Novos céus e Nova Terra” (Isaías 65.17) se constituem a nova realidade instaurada na pessoa e na obra de Jesus Cristo, que são diferentes da realidade do mal.
Para uma cristologia renovada, há dois momentos que são fundamentais nessa nova realidade reflexa: um momento cristológico e um momento pneumatológico. O primeiro refere-se a uma realidade que nos precede; o segundo momento está mais diretamente centrado numa atualidade da vida do crente, sobre uma postura própria engajada na vida eclesial. Esse engajamento se dá justamente na história. A Cristologia tem como mediação original a pessoa de Jesus Cristo, que é o mediador da obra da criação, segundo o Novo Testamento (Colossenses 1.16ss; Efésios 1.3ss; 2.10; Hebreus 1.2; João 1.3). Essa mediação tem o sentido de se enfocar a verdadeira face do humano, e nada do que é humano pode ser estranho para Deus e para o próprio mundo. Há uma dimensão corporificada dessa realidade nova, enfatizada pelo cristianismo.
Há uma dinâmica que envolve a criação, lugar da Cristologia. Cristo, a face humana de Deus; a imagem perfeita de Deus. Deus interroga, interpela e convoca o homem ao mesmo processo dinâmico, dentro da própria criação. Assim, se observa a prioridade de uma ordem de aliança. Há a inserção da temática da cristologia na temática da criação, encontrando fundamento sobre uma base trinitária de Deus. A cristologia está inscrita dentro de uma aliança, uma Escritura de dois Testamentos: um Antigo e um Novo Testamento. Daí a prioridade de uma ordem da Lei. Cristo, segundo a Lei tornou-se maldito. Cristalizou-se um dramático processo teológico, de um drama de morte. Que Lei tem prioridade? Paulo fala da Lei do Espírito e da realidade daquele que crê.
Há verdadeiramente uma encarnação. Uma encarnação que tem a ver com a cristologia e com o mistério pascal. A temática da encarnação sofre, em efeito, todos os equívocos. Percebe-se a necessidade de uma reflexão sobre o complexo cruz-ressurreição, evitando-se qualquer extremo. Também, uma encarnação subordinada a um ofício de mediação. A própria encarnação tem a função de mediação. Assim, recapitula o Cristo e sua pessoa, evocando uma vinda de Deus. Destaca-se o valor do humano. As duas naturezas de Cristo, não confusas. Deus se inscreve na verdade e natureza humana. A confissão na encarnação é radical, logo, não há traços de docetismo. Dar-se uma passagem pela carne humana. Assim, pode-se ver essa dimensão cristológica: Jesus Cristo, filho de Deus e filho do homem.
Todo esse conteúdo teológico remete ao estado reflexo de uma devolução decisiva a Deus, através da pessoa e da obra de Jesus Cristo. Cristo é dotado de total presença e de total salvação. Cristo é o Novo Adão, e isso significa o retorno às origens. A ressurreição é a exaltação que proclama o senhorio de Deus em Cristo, fazendo convergir para ele todas as coisas por meio de Jesus Cristo, que é o mediador da criação e da redenção.

A encarnação é vista como processo de desenvolvimento, diferente de um término, de um fim. A temática da encarnação não dispensa o confronto com a realidade. O mal é um enigma, que está presente dentro dos limites da criação. O mistério pascal é historicamente condensado no momento da salvação. Há a legitimidade de uma dose em conta de dois pólos da obra prima da salvação: divino e humano. A obra de Cristo é contemplada pela Teologia como prestação humana compensatória. A causa material da salvação: Deus nos amou primeiro e enviou seu Filho, nos reconciliando consigo mesmo, por meio de Cristo. A construção teológica proposta, trata da ação de Cristo como homem, uma prestação própria e necessária à nossa salvação. Desta forma, se percebe uma ordem de equivalência cósmica. É colocado em evidência o sacrifício de Cristo como substituição vicária, uma vez que o Evangelho mostra Jesus convertendo o sofrimento em intercessão. Um Deus que assume as conseqüências do pecado. Sendo assim, a realidade do mundo é a sua reconstrução; sua redenção. A cruz é contemplada como reversão dialética. E de uma outra parte a ressurreição como recriação da parte de Deus.
Todo esse processo conduz a uma vida no Espírito, considerando a realidade que cerca a existência humana. A vida no Espírito é uma vida que percebe a realidade que não pode ser ignorada. Assim, tem de haver uma pneumatologia que repouse na cristologia, dialogando com a antropologia teológica, a fim de que seja preciso desenvolver o processo global de salvação na perspectiva cristã. A própria salvação do homem como sujeito histórico, amado pelo Criador. O ser humano é valor absoluto; corpo de carne – corpo histórico. Assim, são importantes a articulação da Igreja com as realidades sociais, políticas e culturais. É preciso guardar-se de toda reivindicação ilegítima, quase total e unitária, como apelo a uma pregação ética do tipo tremenda e unicamente entusiasta produzindo efeito desqualificante, sobretudo das instâncias do mundo e uma dissolução subseqüente e especificamente teológica.

Os objetivos gerais do trabalho que ora se pode apresentar mediante resenha, terão seu alcance na medida de uma nova consciência e de uma integração que são ansiosamente esperadas. Convictamente, o cristianismo cumprirá o seu propósito: de ser responsável pelo mundo, numa dimensão cósmica, em que a salvação não só atinge o humano plenamente, mas também o cosmo. Quem não se conformar com essa realidade do Espírito de Deus, não poderá exercer o verdadeiro significado da vida cristã. Estará totalmente em estado de alienação.