sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A VIOLÊNCIA E O SAGRADO


Uma análise da natureza da violência segundo o escritor francês René Girard

Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha
  • GIRARD, R. A Violência e o Sagrado. [Tradução do francês La Violence et le sacré: Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra e UNESP Editora, 1990.


PONTOS FUNDAMENTAIS

Entre o sacrifício e a violência existe certa relação. A violência entre os grupos humanos é uma realidade presente. Não há como negar essa realidade. A violência faz a separação; destroi a comunidade. Quanto mais se quer destruir a violência, mais a alimenta. Pergunta-se: Como se chega à vivência de paz e a criação de comunidade? Responde-se: Mediante a canalização de todos para fora do grupo. O grupo desvia em direção a alguém (vítima) fora da coerção do mesmo grupo a violência, que de outro modo iria recair sobre os membros do grupo. A teoria do “bode expiatório”. A violência não pode ser eliminada, mas desviada, para a vítima, segundo o que ensina a religião. Ela se torna assim benéfica e construtiva porque se adquire a paz da comunidade. Aquele sobre quem recai essa violência legítima é a vítima sacrificada, e é expiatória. É fácil chegar à conclusão de um mecanismo de substituição, que faz parte de todo sacrifício. No mundo religioso o sacrifício é possível à substituição da vítima. O animal substitui a pessoa. Para proteger da violência o grupo desvia a própria para a vítima sacrificada.
No sacrifício quando a vítima é expiatória está a origem da sociedade. É algo fundante para toda a sociedade. Os membros do grupo humano se sentem purificados do mal quando destroi a vítima expiatória, desta forma descarrega na violência toda a violência interna de todos. Uma espécie de transferência coletiva muito forte. O pessoal do grupo não percebe na própria violência. Se há uma percepção, não funciona. O sacrifício não é visto como violência. É vista no bode expiatório Na unanimidade realiza-se a integração da comunidade. Assim, esta violência, legítima é fundadora da sociedade e da cultura. Na unanimidade cria-se a comunidade.
No sacrifício a violência não exige vingança. Fora do sacrifício existe, é claro. Sem o sacrifício impera a vingança de sangue, sob um processo interminável. Só o sacrifício pode parar esse processo infernal. Por isso o sacrifício é tão importante para a sociedade, de forma geral, para o seu conjunto mútuo.
No sacrifício os membros do grupo não percebem que a eliminação da vítima é fruto da violência deles. Trata-se de uma violência ocultada. A vingança como tal, e a violência, não aparecem como tais no sacrifício. É o resultado da obediência ao imperativo absoluto, divino. É o mecanismo desviatório presente no sacrifício.
A eficácia da substituição sacrificial supõe as semelhanças e dessemelhanças entre a vítima e o pessoal do grupo. Semelhança, mas sem confundir-se com os membros do grupo. Por exemplo: Uma vítima do mundo atual é diferente do ser humano. O mito de Édipo simboliza por sua parte desordem e violência. Depois de morto ele passa a ser visto como redentor.
Na gênese do sagrado se encontra o mesmo mecanismo que indicamos para a gênese da comunidade. A solução para a violência interna que desagrega tem um caráter sacral (é algo sagrado). O auto-engano presente no sacrifício pressupõe uma ordem superior divina. No coração do sagrado está presente a violência. O sagrado é a violência dos humanos vista como exterior a nós mesmos. Aí ficamos tranquilos. Neste sentido, o sagrado é útil. A violência não é humana. É uma ameaça transcendente que deve ser aplacada com ritos adequados; celebrações adequadas; a conduta modesta; nada de orgulho. Seria oportuno se o homem observasse o que acontece na comunidade. A evidência é vista no sobre-humano - vem de fora -, não está dentro de mim. Mediante a religião o ser humano sabe o que deve ser feito para manter a violência longe. É por isso que a religião dá tanta segurança. Quando os ritos são descuidados acontece o desastre.
O rito é muito importante, porque é necessário perpetuar a solução sacrificial expiatória. O acontecimento fundador passa a ser um rito. A repetição do rito sacrificial reitera de maneira forte a participação produzida pelo sacrifício primeiro, que criou a união do grupo; a comunhão do grupo. Assim, surge a necessidade de uma instituição estável; de um sistema preventivo para não recair na violência interna. Ritos, tabus, proibições, etc., perpetuam a eficácia do episódio da primeira vítima. E os mitos? Relembram esse episódio fundante. Convertido em rito, esse episódio se converte em um animal (substituição).
Eliminada a transcendência do sagrado toda a violência acaba sendo legitimada, se demitifica, abre-se a porta para uma violência maior, descontrolada. Temos como consequência secularizada. Aparece o famoso Sistema Judiciário, sai de cena o religioso. O sistema judiciário procura racionalizar a vingança. Mas fica limitada pela represália realizada pela autoridade competente. Trata-se de uma vingança. Continua presente na sociedade moderna e pós-moderna, e as vítimas continuam por aí. No sistema judicial a vingança não é vingada. O dever da vingança é superado para o cidadão concreto. Tanto no homem primitivo como no moderno se dá o ocultamento interno de vingança, de justiça soberana. Está presente no sistema, no oculto da vingança. Quando o sistema judiciário é desmistificado a coisa fica séria. Começa a imperar uma violência sem medida e a transgressão se torna um fenômeno social. Abrem-se as portas para o mais grave. Por exemplo: invasões de terra; justiça com as próprias mãos, etc.
Qual é a origem da violência tão enraizada no ser humano? Está na dinâmica do desejo. No desejo além do sujeito e do objeto há um terceiro - o rival -, que precisa do mesmo objeto que deseja o sujeito. Isto é um dado circunstancial ou não? Não. O sujeito deseja o objeto porque o rival o deseja. O sujeito é levado a imitar o desejo do outro, considerado como o modelo. Será uma coincidência do desejo. O ser humano é um ser de desejos. Ele quer ser. Somos inacabados, sempre querendo ser mais. É um ser com fome de desejo. O outro, o modelo, indica com o seu desejo aquilo que eu devo desejar para ser mais pleno. Com seu desejo o modelo indica aquilo que é desejável. O desejo é radicalmente mimético (imitação). A convergência dos dois desejos gera o conflito, logo, gera violência. Ao negar aquilo que é semelhante leva à unidade. É um negar afirmar que na semelhança haja unidade. O modelo leva à rivalidade. Desejo e violência estão vinculados mutuamente. Por uma parte você é chamado a imitar, isso provoca uma violência. Causa sofrimento. O que é aprender? Imitar o modelo. Não é apenas uma representação, mas uma apropriação. O modelo se torna rival, se não é representação ou apropriação. Rivalidade Mimética que explica o Complexo de Édipo. Imitando o pai, imita-se o desejo dele. O Complexo de Édipo: o pai deseja a mãe - o filho deseja a mãe (desejo). A criança não tem consciência, e o modelo é que faz a leitura e impõe esse tipo de leitura ao filho. O filho fica perturbado pela cólera. O filho fica com raiva. É obrigado a escolher entre a fidelidade ao modelo e a fidelidade ao próprio desejo (mãe). Esse é o desgarramento. Normalmente a criança escolhe o modelo, a fidelidade ao desejo. Há um forte conflito. Por que escolhe o modelo? Deverá ser justificado pela minha consciência (no filho, ou no discípulo). Cresce fiel ao modelo, e o desejo é sacrificado.
No mundo moderno o desejo mimético ficou libertado de proibições religiosas, de tabus, de justiças (tipo jurídico). Será que fica libertado da angústia? Não. Pois nas proibições que tinham no papel de certa presença dos desejos conflitantes estouram contra o modelo vivo convertido em rival (estava oculto); acaba sendo de maneira ativa. Não há como se libertar da angústia, que é o inimigo número um do ser humano. O modelo vivo convertido no moderno. Desenvolve-se com isso um universo competitivo. Quanto mais o homem moderno abraça modelos libertadores acaba se afogando. Quanto mais se defende as ideologias, mais conflitante o desejo de realizar as utopias.

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